Saturday, January 28, 2012

Engenheiros: inovar versus descobrir, os "papers" e as "coisas"


Na intervenção no recente Workshop conjunto das minhas cadeiras de Inovação e C&T, dos programas doutorais da Escola de Engenharia e do EDAM MIT Portugal, o professor António Araújo manifestou de forma clara e vincada a sua incomodidade perante o processo de avaliação académica em engenharia.
Recordam-se os seus pontos essenciais:
- engenharia é diferente de ciência,
- escrever "papers" não parece ser a vocação de engenheiros,
- afinal o essencial da engenharia parece passar ao lado da atividade académica em engenharia.
Estamos de acordo. Vale a pena discutir estas ideias.
A ideia de que ciência e tecnologia são coisas muito diferentes é um dos "leitmotivs" da nossa abordagem pessoal sobre inovação tecnológica. Na realidade a confusão entre as duas coisas é um dos problemas mais lamentáveis do ensino superior em Portugal, e não só, nas áreas da engenharia e das tecnologias.
O objectivo da ciência é descobrir conhecimento, enquanto que o objectivo da tecnologia é inovar, criando novas combinações de artefactos adoptados por comunidades de utilizadores que neles encontram valor acrescentado. Descobrir e inovar não são a mesma coisa. São mesmo muito diferentes. Inovar pressupõe valor num mercado, e o valor da inovação é dependente da evolução económica dos mercados. Logo por natureza uma inovação tem um ciclo de vida e uma temporalidade finita, ao contrário do conhecimento da ciência, que em principio é intemporal (até ser eventualmente refutado ou mostrado como falso) e independente das vicissitudes do mercado e valorizações pelos utilizadores, reais ou potenciais. A "verdade" da ciência é o resultado de um processo de emergência (no sentido da teoria da complexidade) de consenso entre a própria comunidade científica, em função do seu enquadramento nos paradigmas conceptuais vigentes nessa comunidade (Kuhn e, especialmente, Polanyi) e da evidência da sua falsidade, ou não (Karl Popper). Em ciencia não há inovação, mas sim descoberta. Em tecnologia não existe verdade, mas existe sucesso: a adopção de uma certa ideia do uso do artefacto por uma comunidade de utilizadores que deles tiram partido (valor), no seu contexto especifico de utilização (logo, nas condições da sua própria existência civilizacional). Logo os critérios de avaliação de descoberta e inovação são completamente diferentes. É por isso dramática a tendência (crescente nalguns sítios, inclusive na UM) para querer adoptar critérios de avaliação "científica" para a avaliação "tecnológica" - e o resultado são monstros inqualificáveis como essa coisa do RAD, que pervertem a vocação de uma Escola de Engenharia, atrasam o desenvolvimento tecnológico, prejudicam a formação dos alunos e a inserção de verdadeiros engenheiros e tecnólogos no ensino universitário.
Compreende-se bem a incomodidade do António: depois de dois anos na ESA e (quase) dez anos integrado no team de Fórmula Um da Toyota (cerca de oitocentas pessoas!, baseado em Colónia, na Alemanha) com responsabilidades sobre equipes de engenharia do team, logo em circunstâncias altamente competitivas, quer sob o ponto de vista interno como externo, com uma forte pressão de inovar e ter sucesso em curto prazo, por natureza nas fronteiras da tecnologia (engenharia), o choque do ambiente académico é perfeitamente compreensível.
Não porque a vida académica não seja altamente competitiva - na realidade hoje em dia é. Mas é uma competição muito diferente da competição do mercado tecnológico, e onde os critérios de sucesso são completamente diferentes dos critérios que avaliam o sucesso no mercado da engenharia e das tecnologias - é uma competição baseada no sucesso de publicações (papers), ainda por cima geridas por critérios de valor "científico", e não tecnológico.
Passar do mundo de fazer coisas novas e avançadas que funcionam (vão e vêm á ISS no espaço, estão dentro de semanas a correr nos carros a competir nas pistas de Fórmula Um) para o mundo dos "papers" onde os critérios de sucesso (publicação ou não, e onde) são definidos de forma completamente diferente, e mesmo sem relação alguma com os critérios anteriores, é naturalmente um grande choque. Porque é passar para um mundo onde as competências (skills) para o sucesso são completamente diferentes, competências essas que se aprendem num mundo que não é o da engenharia real (mas que são competências que realmente se podem aprender de forma progressiva - um ponto geralmente ignorado hoje em dia, mas que não tem muito a ver com a tecnologia e a engenharia).
A realidade é que o essencial da engenharia parece passar ao lado da atividade académica em engenharia. A avaliação dos doutoramentos é feita pelo sucesso dos "papers" e não pelo sucesso (ou promessa de sucesso) dos artefactos e das tecnologias desenvolvidas. A avaliação das carreiras académicas é feita por critérios de papers e citações. Os doutorandos e os académicos queixam-se, com razão, que têm muita dificuldade em publicar sobre protótipos e semelhantes (o que é verdade: as equipes editoriais são em geral ignorantes e, tal como muita outra gente, mesmo na academia, confundem inovação com novidade - coisas muito diferentes). Ou seja, um doutoramento em engenharia acaba por desenvolver competências que não são as essenciais da engenharia, com manifesto detrimento das essenciais - desenvolver "coisas" que funcionam melhor e que são mais úteis (com maior valor, pelo menos potencial). Note-se que não estamos a dizer que a competência de escrever e publicar é irrelevante ou pouco útil - não, até porque a consideramos muito importante - mas não é o essencial da engenharia. É um complemento, depois do essencial.
Há poucos meses ouvimos um dos grandes professores do MIT começar uma intervenção numa conferencia MIT Europe, em Viena, com umas palavras muito significativas. Qualquer coisa como: "Nós, no MIT, acima de tudo gostamos de falar dos nossos protótipos e nos nossos modelos de simulação, não dos nossos papers". Mensagem clara, com muitos destinatários, e uma marca de diferenciação. É por isso incompreensível que nos critérios internos para avaliação do sucesso das atividades do MIT Portugal entrem prioritáriamente os papers - e os contributos para as empresas afiliadas, os protótipos desenvolvidos, etc., sejam secundarizados e, pior do que isso, ignorados e mesmo desvalorizados.
Para post de um blog, isto já vai longo. Mas provavelmente voltaremos ao assunto.

Saturday, January 21, 2012

Stiglitz, Portugal e a política

1. Um artigo de opinião no Expresso, de 21 de janeiro de 2012, por Martim Figueiredo, recolhe alguns comentários informais de Stiglitz durante um jantar, no decorrer da sua recente passagem por Portugal, patrocinada pela associação das empresas de (grande) distribuição, a APED.
A primeira ideia: a circulação monetária depende da confiança da economia, e se não existir banco emissor de ultimo recurso, o mercado entende que a circulação não está garantida. Como se sabe, este é um problema estrutural do Euro. Sob o ponto de vista político, as palavras (esperadas) de Stiglitz constituem uma agenda política alternativa para Portugal: "Portugal devia juntar-se à Itália, e combater ferozmente o disparate alemão".
A segunda é mais complexa, e "tenebrosa" (como a qualifica o autor da nota no Expresso): "Portugal não cresce porque esgotou as ferramentas macroecónomicas para o fazer". Temos as nossas dúvidas sobre isso, e a questão ter-se-ia que por ao nível de Portugal e da UE (ou pelo menos da zona Euro). Assinalamos os vários itens do argumento de Stiglitz, uma vez mais tal como referidos pelo autor da nota:
  • Portugal terá esgotado a estratégia keynesiana do investimento em infraestruturas (públicas). Será verdade? Temos imensas dúvidas disso - num país com uma má rede ferroviária, sem acesso à rede europeia de alta velocidade ferroviária, ainda com muitos problemas de acessos rodoviários nas zonas periféricas, ainda com grandes espaços de necessidades para melhorar a qualidade das infraestruturas de ensino, de saúde e da justiça, há certamente ainda muita necessidade de melhoria de infraestruturas. A tese anti-infraestruturas, segunda a qual Portugal não precisa de mais cimento, é uma "neo-parolice nacional", centrada em Lisboa, que reflete uma retrógrada postura política anti desenvolvimentista, sob a capa do argumento financeiro, e que sonha com um retorno ao desacreditado "laissez faire" como a fonte de soluções privadas para os problemas e necessidade públicas.
  • a industria de manufactura já não compete com os países de mão de obra barata. Sinal positivo ou negativo? Entendemos que é positivo. Passamos agora a ter que competir com a Alemanha, UK e outros países mais desenvolvidos, mais do que com "o resto" ainda emergente ou subdesenvolvido. E competir com os mais competentes é a melhor forma de melhorar ainda mais. É espantoso como alguns que reiteradamente clamavam contra um Portugal de baixos salários parecem ser muitas vezes os mesmos que agora clamam contra o custo excessivo da mão de obra portuguesa, e querem resolver essa questão com acordos pouco relevantes, como o recente acordo de concertação social, que parece ser remeter as empresas portuguesas para um paradigma competitivo felizmente já ultrapassado e simplesmente baseado em salários baixos. Miguel Sousa Tavares, no mesmo numero do Expresso, faz um comentário certeiro sobre este ponto: o acordo é irrelevante para as boas empresas, e para as más empresas pouco mais será do que paliativo pouco relevante.
  • a industria tecnológica demora no mínimo dez anos a dar resultados, e o mesmo acontece com as reformas estruturais. De acordo sobre a tecnologia: a forte não linearidade dos resultados da chamada I&D (especialmente o D de desenvolvimento, basicamente empresarial) torna de muito alto risco qualquer política baseada nesta ideia, apesar de ela ser altamente atrativa para a classe política. Esta terá sido a grande ilusão do "choque tecnológico" com que José Sócrates sonhou na parte inicial do seu primeiro mandato. Porque é uma política de resultados "ingeríveis" no curto e médio prazo, precisamente o prazo essencial para o jogo político corrente.
  • as exportações produzem efeitos rápidos se existir um choque fiscal que desvalorize artificialmente a moeda. O que não estamos em condições de fazer. Sem mecanismos de desvalorização da moeda, inviáveis no espaço do Euro, fica um choque do tipo "redução da TSU" - um modelo teórico que o governo rapidamente compreendeu que na prática seria inviável e um desastre, socialmente insuportável pela transferência de rendimentos (indiretos) dos trabalhadores para os empresários e a banca.
No mesmo número do Expresso aparece uma entrevista com o próprio Stiglitz, em geral sem grandes novidades. Assinala-se uma passagem, aliás muito coerente com anteriores opiniões suas: "as medidas de austeridade comprometem o desenvolvimento. O que vai tornar ainda maiores os problemas da dívida. (As agencias de rating) Estão absolutamente correctas em relação a isso".

2. A credibilidade de Joseph Stiglitz vem-lhe tanto da sua experiência como Chief Economist do Banco Mundial durante três anos, até 2000, como do seu anterior papel na administração do Presidente Clinton, como também por ter ganho o prémio Nobel, em 2001, pelos seus trabalhos em economia da inovação e da informação, em particular sobre os efeitos da assimetria da informação no funcionamento da economia. Pouco depois de sair do World Bank, Stiglitz publicou vários livros. Em 2003 publicou "The roaring nineties", com o subtítulo "We are paying the price for the greediest decade in history" - ainda uns bons anos antes da crise financeira de 2008. O livro foi publicado na ressaca da bolha da internet ter rebentado, e da tal "nova economia" afinal se ter mostrado pouco nova. Em 2010 publicou "Freefall: America, free farkets and the sinking of world economy" onde analisa as questões de regulação levantadas pela crise de 2008.
O capítulo 11 de "The roaring nineties" desmistifica algumas ideias feitas prevalecentes sobre as políticas económicas e os acontecimentos da década de 90. No início do capítulo Stiglitz agrupa-os nos seguintes mitos (palavra usada pelo próprio):
  • que a redução do deficit foi, por si, a causa da recuperação económica na década de 90. "No curto prazo, os deficits podem ser absolutamente essenciais para recuperar de uma recessão, e os custos económicos e sociais de prolongar uma recessão são enormes, muito maiores do que os custos associados ao aumento do deficit" (p. 170).
  • que o brilhantismo dos economistas (americanos) criou uma época e um modelo de nova prosperidade (americana), que deve ser exportada globalmente. "As economias são como grandes navios, não podem dar a volta rapidamente" (p. 171).
  • que a chave do sucesso reside na submissão aos mercados financeiros. "Os mercados financeiros não são a fonte da sabedoria; o que é bom para Wall Street pode ou não ser bom para o resto da sociedade; os mercados financeiros são de vistas curtas. Um país que se deixe submeter unicamente à disciplina dos mercados financeiros está a correr um perigo por sua própria conta e risco" (p. 176)
  • que a globalização do modelo americano conduzirá inevitavelmente à prosperidade global, beneficiando simultaneamente os mercados financeiros e os pobres dos países em desenvolvimento. "O sistema económico americano tem imensos méritos, mas não é o único sistema que funciona - outros sistemas poderão funcionar ainda melhor, para outros países" (p. 178).
Num dos seus livros seguintes, "Making globalization work" (2006; Penguin, 2007), Stiglitz continua a análise crítica do sistema económico, rejeitando o "fundamentalismo dos mercados", segundo o qual o funcionamento dos mercados por si só conduziriam à eficiência económica - a tese ultra liberal, com raízes fortes em Hayeck, e que atualmente domina as políticas económicas e sociais em Portugal.
Uma observação no capítulo 8 (O inferno da dívida) parece muito atual para a situação na Europa: "Enquanto que todos os países industrialmente avançados reconheceram a importância de leis de falência que ajudem pessoas e empresas a reestruturar dívidas insuportáveis, não temos um conjunto paralelo de leis que regulem a reestruturação da dívida soberana e que o permitam fazer de forma justa, eficiente e expedita" (p. 213).

3. Sendo Stiglitz um reputado economista, mas reconhecidamente um social keynesiano e anti liberal, a sua vinda a Portugal para falar num evento da APED não foi certamente por razões académicas, e só pode ter uma interpretação política: um voto de desconfiança nas atuais políticas governamentais e europeias, pelas grandes empresas de distribuição, e respetivas casas-mãe (SGPSs, holdings).

Anexo:
Hà alguns anos atrás, em 2002, no início do mandato de Durão Barroso, Michael Porter veio a Portugal, com grande fanfarra, a convite de Mira Amaral & seus amigos. Na altura escrevi um artigo, que foi publicado no Expresso, entitulado "Porter, Portugal e a política", de onde se tirou inspiração para o título deste post. Esta ideia de contratar nomes sonantes da academia, conforme as conveniências, para a luta política não é nova, nem sequer será ilegítima. O que pode ser menos aceitavel é que não se assumam claramente os objectivos da intervenção.
(Adicionado a 28.janeiro.2012)

(Citações com itálicos da nossa responsabilidade. Páginas das citações dos livros de Stiglitz referem-se às edições paperback da Penguin Books, 2004 e 2007, respetivamente)


Thursday, January 19, 2012

Do monorail ao APT e à Segway, em cem anos


Os combóios "Pendulinos" do nosso serviço Alfa resultaram dos desenvolvimentos do APT, muito em special dos mecanismos de "tilting", de forma a que a composição não precisasse de reduzir velocidade nas curvas. Se há domínio exemplar para o conceito evolutivo de inovação como "redescoberta de desenvolvimentos passado agora aplicados em  novos contextos" é o dominio dos transportes. Mais de setenta anos separam as duas primeiras imagens. E vinte anos entre a segunda e a terceira. 
E se fosse apenas preciso um único rail para o transporte ferroviário, em vez de dois? A ideia do monorail é antiga e persistente. Um desafio para o qual têm sido propostas muitas soluções - mas um desafio que niunca vingou como tecnologia adoptada em larga escala. O conceito foi especialmente popular nos finais do século XIX de depois na década de 50 do século XX (para uma história breve dos monorails, ver aqui e aqui; para uma introdução á evolução dessa tecnologia, ver Wikipedia).
O caso mais famoso e interessante terá sido o gyro monorail de Louis Brennan (1852-1932, Wikipedia), patenteado em 1903 e demonstrado com sucesso em 1909, no Reino Unido (primeira imagem), um sistema monorail equilibrado por um giroscópico, desenhado a pensar em aplicações militares (rapidez de implementação da linha para soluções expeditas de transporte ferroviário). Brennan tinha já feito inventos militares, sendo famosa a venda milionário que no inicio do século XX fez de uma patente sobre um sistema de defesa de portos e canais por torpedos.
Uma bicicleta é um veículo "monorail" (sem rail) equilibrado pelo giroscopio humano de cada um. Um caso clássico de conhecimento tácito (aliás muito citado por Michael Polanyi). Alguém sabe fazer um livro de instruções de como andar de bicicleta? Mas a verdade é que muitos sabem andar de bicicleta, e aprenderam a andar experimentando ("learning by use") e aperfeiçoando o processo, em especial depois de cada insucesso mais ou menos doloroso. Logo sabemos muito mais do que conseguimos dizer (explicar). Como em todos os processos de construção de conhecimento tácito (não explicito e não estruturado), vai-se conhecendo pela interiorização progressiva da experiencia ("indwelling"). Cada experiencia reorganiza o conhecimento anterior de forma irreversivel. Andar de bicicleta e conduzir um automovel foram exemplos de Polanyi que inspiraram os conceitos de "rotinas" (pessoal e organizacional) explorados por Nelson e Winter no seu famoso livro "An evolutionary theory of economic change" (Harvard University Press, 1982, ver cap. 2 (Skills), em especial secção 4.2 Skills and tacit knowing), base da chamada teoria "evolutionary economics", que muito tem influenciado o estudo dos processos de mudança e de inovação na economia, durante os ultimos trinta anos.
Voltando aos monorails: a exploração comercial do "gyro monorail" de Brennan nunca se concretizou. Chegou a estar adjudicada uma linha próximo de Moscovo, chegaram a ser lançados alguns kms de monorails, mas nunca chegou a abrir para exploração. O medo das consequencias do giroscopio (mecanico) poder falhar terão sido sempre determinantes.
Entretanto um chip com os circuitos electonicos de giroscópio custa agora 5 a 10 euros. A miniaturização da tecnologia e a sua melhoria permitem novos arranjos das soluções deste tipo.  A Segway foi apresentada na altura como uma "revolução" nos meios de transporte. Sem se discutir o seu razoavel sucesso, ficou longe da anunciada revolução, e é facil encontrar muitas "raízes" anteriores para a tecnologia. Embora recorra a modernos giroscópios electrónicos, o sistema continua a ser dependente da condução por um humano - nesse sentido o sistema de Brennan era mais autonomo do operador humano. Conduzir uma Segway implica uma (curta e fácil) aprendizagem de condução, asociada à inclinação do condutor - uma vez mais uma forma de conhecer tácito por aprendizagem "fazendo".
Poderão as novas gerações de giroscopios electrónicos e a fiabilidade dos actuais sistemas permitir ressuscitar / redescobrir a tecnologia do monorail?

Tuesday, January 17, 2012

A morte de um grande inovador


Meus senhores e minhas senhoras, sugiro que tirem os chapéus e apresentem os vossos respeitos. Uma das (poucas) empresas simultaneamente multinacional e centenária, e um grande "transformador" do mundo e da sociedade, está a morrer. Chama-se Kodak.
Nascida em 1880, há mais de cento e trinta anos, a situação parece desesperada. Recentemente o fabrico do produto mais emblemático (o filme Kodachrome), porventura um dos mais inovadores criados pela empresa, e tradicional cash cow da Kodak, foi descontinuada, depois de 75 anos no mercado (ver comentário na Newsweek).
Os habituais treinadores de bancada falarão depois de "erros de gestão" e similares. Mas grandes gestores e milhares de funcionários dedicados não parecem ter sido capazes de evitar o desfecho. Entretanto o website oficial anuncia que a empresa ganhou vários prémios por inovação no último CES (Las Vegas).
Alguma literatura recente constitui interessante "food for thought". O The Economist publicou nos últimos dias dois interessantes textos. Num ("The last Kodak moment", 14 janeiro 2012) comparam-se as trajectories da Kodak e do seu arquirival, a Fujifilm, e os diferentes sucessos conseguidos nos dias de hoje. Noutro ("Out of focus", 12 janeiro 2012) recorda-se a capacidade inovadora da Kodak na introdução das tecnologias de imagem digital - na realidade a Kodak foi percursora na própria tecnologia que a havia de dizimar.
Também o WJS tem seguido o caso da Kodak. Um dos últimos artigos ("Kodak did not kill Rochester. It was the other way around", 14 janeiro 2012) relança a tese do impacto do isolamento geográfico, já discutida no primeiro dos artigos do The Economist. Entretanto a Fortune (8 janeiro 2012) recorda um artigo publicado em 1883, "Embattled Kodak enters the electronic age", excelente complemento ao segundo dos artigos referidos do The Economist.
Em 1976, a Kodak tinha um invejável market share de 90% do filme e 85% das câmaras fotográficas  nos USA. Até aos anos 90 sempre foi votada como uma das marcas mais bem reconhecidas e mais valiosas dos USA. A sua história está (tal como a da IBM) cheia de patentes e de produtos inovadores, alguns dos quais constituíram verdadeiros marcos civilizacionais. A tradição da Kodak sempre se caracterizou (tal como a da IBM) por elevados investimentos em I&D, uma rigorosa cultura industrial e fortes relações com a comunidade. O valor das ações está quase a zero (ver gráfico seguinte: cotações dos ultimos dez anos). Como foi possível chegar à situação presente?


Recordo bem quando as primeiras máquinas fotográficas digitais chegaram ao mercado de grande consumo, anos 90. Não eram baratas, a qualidade de imagem era apenas aceitável, desde que não se ampliasse muito. Facilidades de zoom limitadas. E, claro, era preciso ter computador e saber usa-lo, o que há vinte anos não tinha a mesma difusão que tem hoje. Mas para fazer uma ampliação a sério, nada se comparava como a "prata" do filme fotográfico clássico. O futuro da prata estava assegurado para as imagens de grande qualidade (migração do incumbente para os nichos especializados de mais alto valor acrescentado). Estava? Afinal não. A própria tecnologia disruptiva atingiu e ultrapassou esses níveis de funcionalidade numa escassa década. Hoje uso uma câmara digital (Nikon D90) com qualidade porventura superior a qualquer câmara analógica então disponível, e os meios de impressão são mais baratos e de qualidade equivalente ou superior. Uma situação típica de uma tecnologia disruptiva.
A forma como a Kodak tentou lidar com o ataque disruptivo, ainda por cima largamente de geração endógena, será certamente objecto de muitas análises.
Alguns comentários:
Primeiro, a opção "uma empresa de imagens" versus "uma empresa de produtos químicos especiais", tomada durante a década de 90, terá sido um erro: afinal de contas foi entrar em terrenos onde a empresa não tinha competências e vocações próprias, em especial nos domínios de marketing, comercial e canais de distribuição, ao mesmo tempo que perdia uma área  de competências"raras".
Segundo, uma empresa concentrada geograficamente numa única cidade (Rochester) cria uma cultura fechada que pode ser contraproducente e constituir um handicap quando se trata de mudança de cultura empresarial. O universo fechado tende a fechar horizontes e a tornar mais difícil a influencia de "ligações fracas" e a abertura à mudança do modelos de negócio. Esta é uma situação bem conhecida nos clusters (o caso da decadência do cluster de empresas de borracha na zona de Akron (USA) é dos mais bem estudados), em situações em que os retornos crescentes se manifestam de forma negativa - sempre na forma de um vendaval devastador.
Terceiro, o excesso de perfeccionismo, que sempre caracterizou a cultura da Kodak (assim como a da IBM nas décadas de 80 e 90) pode ser muita perigosa. A Microsoft sempre cultivou o modelo oposto, no mercado do grande consumo, ocupando espaço de mercado mesmo que sorrendo riscos. Até mesmo a IBM foi em tempos especialista em "vapourware", produtos ainda inexistentes anunciados só para ocupar espaço de mercado e desencorajar a concorrência.
Quarto: a fotografia digital abriu um mercado novo de uma multidão de "não utilizadores" ou "quase não utilizadores" da fotografia tradicional. Como é tipico das situações disruptivas, transformou multidões de não consumidores do produto incumbente em consumidores do novo produto, mais fácil de usar e muítissimo mais barato (mesmo que porventura menos perfeito, o que até isso está a deixar de acontecer). A fotografia deixou de ser para fotografos e banalizou-se. Para uma empresa (Kodak) para fotografos como clientes alvo, a mudança foi dramática. O espaço para ganhar (algum) dinheiro com a captura de imagens passou dos fabricantes tradicionais de máquinas fotográficas para os fabricantes de camaras digitais de grande consumo e depois para os fabricantes de telemoveis e smartphones. Por si, está a desaparecer. A oportunidade para ganhar dinheiro na impressão de fotografias passou dos laboratórios de fotografia para as impressoras e, pior do que isso, a impressão da foto deixou de ser importante para a sua visualização. Ver uma imagem num computador, num telemovel ou numa tablete associa uma magnifica experiencia visual com um custo marginal simplesmente nulo. Numa década, todas as componentes de valor do processo fotografico de grande consumo desapareceram (ou quase). Tal como nas procuras do Google Scholar versus Web of Science e Scopus, a incumbente Kodak (tal como a Thomson Reuter e a Elsevier) acabou por se ver a competir com produtos (máquinas, fotos) que se tornaram gratuitos (ou quase).

F.up: artigo da Business Week: 13.janeiro.2012.

Follow up adicional: FT, 2 julho 2012: para além do assunto Kodak, a questão da perenidade dos
arquivos digitais na "cloud":

  • Happily, I didn’t store all my back-up snaps there – but I could well have done. Even 10 years ago, if you were betting on any company’s photo website to keep your memories safe for a lifetime, it would probably have been the one owned by Kodak.

IBM: cem anos de sobrevivência e inovação




Um artigo recente do WSJ (7 janeiro 2012)  tem um título interessante: "Avoiding innovation terrible toll". O artigo é superficial e tenta comparar as evoluções de longo prazo de empresas recorrendo a comparações ... de curto prazo, em particular da IBM versus HP, e da Apple e Google versus Kodak - na prática comparando trajetórias de alhos com bugalhos. Mas o título capta bem a ideia da "perennial gale of creative destruction" de Schumpeter e o facto de poucas empresas chegarem a centenárias. Cita dois casos emblemáticos dessa resiliência de muito longo prazo: a IBM e a J&J. E capta também a ideia da inovação como “assassina de empresas”, por mais do que um mecanismo (morto por ter cão – inovação falhada – e morto por não ter cão – falta de inovação).
Vale a pena olhar para o último relatório e contas da IBM (2011), que celebra o exercício em que a empresa cumpriu o seu centenário, cem anos depois, em 1911, da constituição da CRT, e quase cem anos de Watson Sr. ter assumido, em 1914, a liderança desse conglomerado industrial com objectivos especulativos (no mercado de capitais). É claro que se pode contestar esta forma de medir a longevidade da empresa. A CRT só passou a denominar-se IBM em 1924, depois de ter progressivamente abandonado os outros negócios e se ter centrado nas máquinas tabuladoras. Será porventura justo considerar a Tabulating Machine Corporation, fundada em 1896 por Herman Hollerith, como a empresa fundadora da atual IBM. Mas isso corresponderia a desvalorizar o papel de Watson Sr., que sempre fez questão de equiparar a história da IBM com a história da sua própria pessoa e família (aliás, uma história de puro nepotismo familiar à custa dos acionistas – bem tolerada por estes dado o magnifico fluxo de dividendos proporcionado). Nesta construção social das fronteiras e dos limites do que é a identidade de uma empresa como a IBM entram muitos factores pessoais e vãs (?) glórias. Watson compreendeu que uma empresa que explorasse a tecnologia das máquinas tabuladoras numa óptica de ferramenta de processamento de dados teria um grande filão para explorar, e para isso o seu passado de vice presidente da NCR das máquinas registadoras foi fundamental para o ADN da futura IBM. Holerith também imaginou um futuro – mas antes para o seu conceito específico das máquinas que desenvolveu e para a sua (dele) tecnologia associada, não necessariamente para os negócios dos sistemas de informação, já para não falar na sua proverbial falta de bom senso de gestão empresarial. A capacidade de criar comunidades rentáveis (sustentáveis) de utilizadores era bem diferente nos dois homens.
A capa do relatório de 2011 merece uma referencia. A sua descodificação corresponde a identificar os passos fundamentais da história dos últimos cem anos das tecnologias e sistemas de informação através de episódios da própria IBM. Na mensagem do Chairman Palmisano aos acionistas recorda-se a capacidade de mudança da empresa ás mudanças no mundo, nas tecnologias e na procura pelos clientes. Mudar e ganhar (mais) dinheiro de forma continuada e sustentável, inovação numa palavra. Por muito conservadora que a IBM tenha sido (e foi, e até mesmo continuará a ser), é um exemplo de inovação continuada (não permanente, mas sempre que necessário) no seu modelo de negócio.
Cita-se:

First, we have foreseen the opportunities of our times, and made markets in them. These have included the automation of modern retail, banking and air travel; the creation of population-scale systems such as U.S. Social Security; and the farther reaches of scientific progress, from the exploration of space to the frontiers of genomics, bioinformatics and nanotechnology. Today, it encompasses the even broader range of work we describe as building a smarter planet—optimizing the enormously complex systems that enable services
Second, we have created the tools to do that ambitious work and to capture its economic opportunity. In the early decades of IBM’s life, this involved clocks, scales and punched card tabulators. It changed fundamentally with the dawn of the computer age, as IBM created many of its technological breakthroughs, from the relational database to the disk drive, DRAM, FORTRAN, the mainframe, the PC and much more.
Finally, we have consistently built an organization that can sustainably deliver that kind of value. This is nontrivial. Over the past century, many enterprises, institutions and governments have come and gone. IBM’s longevity rests on our founders’ success in shaping a particular kind of organization. It was a company that mastered the creation of economic value from knowledge and information; that was truly global.


O complemento “Generating higher value at IBM” à mensagem de Palmisano inclui uma timeline da IBM no ultimo século, relativa à invenção de novas tecnologias, definição de sucessivas arquiteturas de computação e um permanente foco nas atividades de I&D, com a evolução paralela do valor das acções da empresa. Duas notas sobre isso: por um lado o fabuloso valor acrescentado criado aos seus acionistas pela empresa durante cem anos: 40 mil vezes, contra 125 do DJIA; por outro lado, a forte volatilidade (altos e baixos) ao longo do processo, sem prejuízo de uma tendência de longo prazo ascendente, mas que é especialmente visível na última década (e independente das atribulações financeiras dos mercados no final da década).
Recordo uma conversa no início dos anos 80, em que um IBMer visionário nos dizia que a IBM tinha um futuro assegurado porque o seu objectivo era fazer dinheiro e não os computadores. Apesar das dificuldade em desligar da "legacy" (como os episódios do inicio da década de 90 demonstraram), a verdade é que a IBM se tem mantido fiel a essa ideia, e hoje em dia será mesmo muito difícil enquadrar o seu modelo de negócio dentro do quadro tradicional dos negócios das tecnologias da informação. Ter-se-à convertido numa multinacional de sistemas complexas e de negócios da complexidade, com um certa verticalização de áreas críticas e um ecossistema complementar de parceiros.
Recorda-se uma minha nota anterior sobre os Watson e a IBM, aqui. Entretanto acrecenta-se mais um livro com alguma relevância sobre o assunto: Kevin Maney, “The maverick and his machine”, 2003, John Wiley & Sons.

Monday, January 16, 2012

A internacionalização dos pasteis de nata

O ministro da Economia (& outras coisas, incluindo a inovação) lamentou recentemente que não haja empreendedores portugueses a franchisar os pasteis de Belem e/ou pasteis de nata, supostamente uma "inovação" genuinamente portuguesa.
Parece que ignora que cadeias de pasteis semelhantes aos nossos pasteis de nata existem e são mesmo muito populares na China. Provavelmente pensa que isso poderia ter sido feito com uns franchisados de um empreendedor portugues, com um suposto conhecimento "secreto" da formula dos pasteis de nata, tipo "concentrado" da Coca Cola.
A ideia de cadeias de "produtos alimentares portugueses únicos" não é nova. O frango no churrasco tem sido um candidato objecto de várias tentativas - inclusivé pel Eng. Belmiro de Azevedo e / ou Sonae, mas, por razões que não são displicentes, os resultados são pouco visiveis. E lojas de pasteis de nata existem em vários sitios da Europa e fora da Europa, pela mão de emigrantes portugueses.
Pelo tom do ministro, a culpa é dos empreendedores que ou são incapazes ou não vêm o óbvio: o épico potencial dos pasteis de nata para criar uma multinacional que catalise a economia portuguesa. Esta tendência dos académicos para criticarem a incompetencia, falta de visão e sentido de oportunidade dos empresários e empreendedores é tradicional, mas apenas mostra ignorancia, e só tem (quase) paralelo com a crítica simétrica, segundo a a qual os académicos pouco ou nada percebem da realidade (o que às vezes é verdade) e vivem completamente alheios disso (o que por vezes também é verdade, promovido inclusivé pelo modelo de carreira académica vigente).
O que este episódio mostra, para além de uma incrivel ingenuidade ministerial, é um ministro que, para além de não entender a sua função, parece também não perceber nada do negócio de cadeias alimentares e de negócios franchisaveis. Que imagina que é tudo uma questão dos tais empreendedores não terem sido capazes de se lembrarem de uma ideia tão genial e óbvia como a de franchisar os pasteis de nata, o frango no churrasco, e - porque não? - as alheiras de Mirandela, as morcelas da Beira, as queijadinhas de Sintra, etc., etc., ... . Ou seja, o homem pode saber de muitas coisas, mas não percebe nada de negócios. Mais do que triste, é preocupante.

Sunday, January 15, 2012

"Promptware" e a função disruptiva do "search"

Michael Schrage (MIT Sloan) é um dos académicos mais esclarecidos sobre questões de inovação e um dos que melhor tem denunciado as muitas "tretas" académicas sobre esses assuntos. Foi com satisfação que o vi, numa conferencia no ano passado, afirmar alto e bom som que não existe inovação, mas sim "profitable change", e que patentes como indicadores de inovação pouco ou nada significam. (Claro que também o gostei de ver citar Michael Polanyi!).
O seu blog recomenda-se. Um post recente refere que um estudo de gente da IBM mostra que é preferivel não perder tempo a arrumar os mails e que simplesmente é preferivel fazer "search" por termos relevantes. Logo não vale muito a pena perder tempo a indexar, catalogar, arrumar informação digital. Pessoalmente tinha já sentido isso e concluido de forma empirica e progressiva desde que, há alguns anos,  deixei de usar o Outlook e passei a mandar todos os meus mails para a conta do Gmail. A qualidade de vida melhorou (incluindo uma drástica redução do spam visivel).
Algumas observações de Schrage (itálicos da minha responsabilidade):
  • By combining threading with search, technology makes an economic virtue of virtual disorganization.
  • Ongoing improvement in email/document/desktop and cloud-centric search frees them from legacy information management behaviors like filing.
  • Their personal organizational ethos reflects a Toyota Production System "just-in-time" attitude. The technical configuration facilitates a pull — not push — time management. Organization has given way to improvisation.
  • They want what I've described earlier as "promptware" — a cue and intervention that creates measurable value in the moment, rather than promised efficiencies in the future.
  • The essential takeaway is that the new economics of personal productivity mean that the better organized we try to become, the more wasteful and inefficient we become.
As implicações no projecto de sistemas informáticos são enormes. Começa a ser preferivel "serch" do que as operações tradicionais de classificação e ordenação ("sort") que de uma forma ou outra têm constituido o framework conceptual do desenho técnico de sistemas de informação. Quase duzentos anos depois, o conceito de arquivo organizado de doumentos como pilar dos sistemas de informação começa a esvanecer-se.   
O impacto das tecnicas de análise semantica tem demorado a concretizar-se de forma visivel, mas a combinação das técnicas de "search" com a exploração semantica do sentido ou significado ("meaning") de dados não estruturados abre a porta para um novo paradigma, que inclusivé ultrapassa as técnicas de organização de bases de dados.
O caracter potencialmente disruptivo é óbvio: para já a tecnologia é incipiente, as aplicações são ainda marginais, pode acontecer que desenvolvimentos seguintes venham a ter maior profundidade de impacto. Mas a banalização das técnicas de search já é bem visivel: a mancha do espaço aplicativo  tem-se espraiado muito.